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Atletismo

17/03/2016 14h26

Brasil de ouro

Lars Bjorkstrom e Alex Welter: a viagem sem destino que virou o primeiro ouro da vela

Como um improvável encontro entre um aventureiro sueco e um paulista filho de alemães selou a parceria que rendeu o topo de pódio nos Jogos de Moscou, em 1980

Se é verdade que a estreia do Brasil em Jogos Olímpicos foi marcada pela medalha de ouro no tiro esportivo de Guilherme Paraense na Antuérpia, em 1920, também é correto afirmar que, a partir dali, celebrar novas conquistas douradas em Olimpíadas foi algo que exigiu do país um enorme exercício de paciência.

Depois da façanha de Paraense, foram precisos 32 anos até que Adhemar Ferreira da Silva, no salto triplo, fizesse o país brilhar nos Jogos Olímpicos de Helsinque 1952. Com Adhemar, o Brasil voltaria ao lugar mais alto do pódio quatro anos depois, na mesma prova, na edição dos Jogos de Melbourne 1956.

O bicampeonato olímpico de Adhemar, entretanto, marcou o início de um novo jejum. Foram 24 anos de espera no calendário até que uma dupla inusitada de velejadores, formada por um ex-aventureiro sueco e um paulista filho de alemães, superasse os outros rivais da classe Tornado nas Olimpíadas de Moscou 1980.

Alex Welter (à esquerda) e Lars Bjorkstrom, com as medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Moscou 1980. Foto: Alex Welter/arquivo pessoal

Assim como se deu com Guilherme Paraense e Adhemar Ferreira da Silva, a história da quarta medalha dourada do Brasil é fascinante. E teve início muito longe do país, no início da década de 1970, nos Estados Unidos, quando Lars Bjorkstrom, um sueco nascido em Gotemburgo e hoje com 72 anos, resolveu, junto com um amigo também sueco chamado Anders Lublin, encarar uma longa viagem de moto.

“A volta ao mundo, como já foi escrito, não era o plano. Eu e um amigo resolvemos fazer uma aventura sem destino”, conta Lars, de um telefone na Alemanha, onde está atualmente a trabalho. “Saímos de motocicleta da Califórnia e ficamos um ano rodando pela América latina. Em outubro de 1972, entramos no Brasil por Foz do Iguaçu, vindos da Argentina, e resolvemos dar uma parada para ver se tinha um trabalho para que a gente pudesse experimentar o Brasil. Nunca mais deixamos de morar no país”, lembrou Lars, frisando que o amigo de aventuras sobre duas rodas viveu aqui por vários anos, mas retornou para a Suécia com a família na época do ex-presidente Fernando Collor.

“Na maior parte do tempo, nós vivemos em São Paulo”, prossegue Lars, que também chegou a viver no Paraná antes de retornar à maior cidade do país. E foi justamente na capital paulista que a saga da primeira medalha olímpica de ouro da vela brasileira começou a ser escrita.

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Se Lars Bjorkstrom teve que montar em uma moto na Califórnia para chegar ao Brasil, o barco da classe Tornado que lhe abriria as portas para os Jogos Olímpicos de Moscou 1980 teve que deixar a Suécia para que ele pudesse iniciar a trilha que o transformaria em um campeão olímpico.

“Com 12 anos, eu comecei a velejar na Suécia. Eu já estava trabalhando no Brasil e tive chance de trazer esse barco da Suécia por causa da mudança de um engenheiro que veio de lá para cá. Ele alugou um contêiner para trazer sua mudança e começar uma construtora no Brasil. E foi ele quem trouxe nesse contêiner o veleiro, usado, que meu tio na Suécia tinha comprado para mim”, lembra Lars.

A chegada do barco encheu Lars de alegria. Rapidamente, a embarcação ganhou como casa um clube às margens da Guarapiranga. E foi justamente por conta disso que o destino de Lars Bjorkstrom e Alex Welter se cruzou.

Bilhete por baixo da porta

Hoje com 62 anos, o paulista Alex Welter já era um experiente velejador quando, por acaso, avistou o barco de Lars em clube vizinho ao que ele frequentava. A atração foi instantânea. “Eu já velejava na classe olímpica chamada Finn e tinha sido reserva da delegação brasileira em duas Olimpíadas, em Munique 1972 e Montreal 1976”, lembra. “Mas em meados dos anos 1970, eu já sonhava com a Tornado. Só que esse era um barco que não era fabricado no Brasil e que dependia de importação. Eu até quis importar um desses, mas era impossível porque era proibido, mesmo pagando os impostos. Não tinha concessão. O Tornado caía na categoria do iate de luxo, e por isso eu não tinha como mandar trazer um”, prossegue.

Após a conquista do ouro olímpico, Alex Welter (à direita) recebe o cumprimento do russo Victor Potapov, campeão mundial e quarto colocado nos Jogos Olímpicos de 1980. Foto: Alex Welter/arquivo pessoal

Sem que Welter esperasse, seus desejos se tornaram realidade em São Paulo. “Eu sempre fui sócio do Yacht Club Santo Amaro. Então, em um determinado dia, no ano de 1975, eu vi no clube vizinho ao nosso, o SPYC (São Paulo Yatch Club), um Tornado, que era o barco com que eu estava sonhando”, lembra Alex.

“Quando vi esse barco, fui lá imediatamente e quis saber quem era o dono. Foi quando me falaram que era de um sueco, um tal de Lars. Ai falei para me arrumarem o endereço porque eu queria falar com esse camarada. Fui até o apartamento dele e ele não estava. Então, deixei um bilhete pedindo para ele me ligar. E foi assim que tivemos o primeiro contato”, explica o velejador.

“Um dia, voltei para casa e achei um bilhete do Alex Welter embaixo da minha porta. Eu o procurei e daí ele me falou que havia o Brasileiro de Tornado no Rio de Janeiro e que os dois primeiros colocados ganhariam passagens para o Mundial na Austrália. Tudo isso em 1975. Aí eu disse: Então vamos!”, narra Lars, com simplicidade e divertindo-se com as lembranças.

Empolgadíssimo por ter encontrado o barco de seus sonhos e com Lars tendo embarcado na empreitada, Welter tratou de preparar a viagem para o Brasileiro. “No Rio já existiam alguns Tornados que tinham sido importados antes da proibição, sei lá eu de que forma. Aí arrumei uma carreta, pegamos o barco do Lars, arrumamos o engate e levamos o barco para o Rio”, detalha Alex.

Uma boia no meio do caminho

Welter conta que desde sempre teve ótima impressão de Lars Bjorkstrom e se recorda que a empatia entre os dois foi imediata. “Eu tenho origem européia. Meus pais são alemães, naturalizados. Então, eu sempre tive contato com a cultura europeia e acho que isso facilitou a amizade com o Lars”, destaca.

“Ficamos amigos de cara. Eu andava de moto também e me lembro que quando vi aquele sueco velejador e motoqueiro, pensei: ‘Esse é um cara bacana’. Não nos estranhamos em momento algum, tanto que a nossa amizade perdura até hoje e posso dizer que sempre fomos e somos muito amigos. E isso, em uma dupla, é importante. É preciso se entender no barco e fora dele”, prossegue Alex.

Alex e Lars: dupla de bem com a vida, curtindo a parceria e o barco Jacaré. Foto: Alex Welter/arquivo pessoal

Essa ligação foi determinante para que Lars não se importasse muito com um incidente ocorrido na primeira vez que os dois partiram para velejar juntos no Tornado. “Logo no primeiro episódio no Yatch Club, tinha uma bóia um pouco à frente, na saída para a baía. Como o Tornado é um barco que acelera rápido, eu pensei que a gente pudesse passar no meio da bóia sem problemas”, recorda Alex.

“Mas eu esqueci que o Tornado tem, abaixo do travessão dianteiro, um tirante (peça estrutural que tem como objetivo criar resistência a esforços, forças ou tensões de tração) que serve para suportar o mastro. E ela fica posicionada praticamente na linha da água. E isso bateu com tudo na bóia. Me lembro bem que Lars ficou assustado. Ele deve ter pensado: ‘Estou deixando esse cara aí no leme e acho que o camarada não sabe muito bem o que está fazendo’. Imagino que ele deve ter pensado que aquilo não daria muito certo”, diverte-se Welter. “Mas, felizmente, os problemas ficaram por aí. E acho que não o desagradei nas regatas. E daí em diante não houve mais questionamentos de nenhum dos lados”, encerra Alex.

Nasce o sonho olímpico

Quando partiram para o Rio com o Tornado no reboque, Lars Bjorkstrom e Alex Welter sonhavam, àquela altura, apenas com um bom resultado na capital fluminense. Mas, como sempre acontece nas grandes histórias, uma coisa puxa a outra...

“Nós fomos para o Rio e ficamos em segundo lugar. Ficamos felizes com o resultado e, com isso, acabamos indo para a Austrália, competir no Mundial”, diz Lars. “Em Sydney, ficamos em 21º, se não me engano. Mas como os cariocas (a outra dupla brasileira) ficaram em 49º, a gente sentiu que tinha boas chances de ganhar deles nas eliminatórias (para as Olimpíadas). Foi aí que eu e o Alex começamos a fazer o plano de ficarmos juntos e tentar ir para as Olimpíadas de 1980”, continua Lars.

A partir daquele momento, Lars e Alex passaram a competir em diversas provas internacionais. E o fato de Welter ter ido morar na Europa facilitou o caminho na preparação para Moscou. “Em 1979, antes ainda dos Jogos, eu fui estudar na Alemanha, o que favoreceu os treinamentos na Alemanha”, conta Alex, que é formado em engenharia mecânica.

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Alex e Lars em ação no tornado. Foto: Alex Welter/arquivo pessoal

Um dia, na Alemanha, houve um problema com o Tornado de Lars e Alex. “O nosso barco chamava Jacaré. Era um catamarã de dois cascos, com seis metros de comprimento e muito leve. Mas esse Jacaré quebrou em um Campeonato Alemão antes das Olimpíadas. Eu tinha conhecido um alemão que tinha um protótipo de um casco. E ele me falou que a gente podia comprar o casco dele e montar o barco com o resto do equipamento que a gente tinha”, lembra Lars. “Então a gente montou esse novo barco, o Jacaré 2, que tinha casco alemão, mastro inglês, uma vela austríaca, outra inglesa, a bússola era sueca e tinha também equipamentos espanhóis. Era um salada de tudo o que era lugar do mundo”, continua Lars. “Foi com esse barco que a gente competiu nas Olimpíadas, só com algumas modificações”, continua.

A confirmação da vaga para os Jogos de 1980 veio durante competição na Itália. “Aconteceu no Campeonato Europeu, durante a Páscoa. Ali a gente confirmou a vaga. Tinha um carioca que também tinha ido, chamado Rolf Tambke, que também estava na disputa. A conquista da vaga era o nosso objetivo e além de conquistarmos a vaga nós quase ganhamos a regata. Ficamos em segundo. Estávamos indo muito bem e foi ali que a gente ficou bem confiante e percebeu que tínhamos grande chance de ganhar a medalha (nos Jogos Olímpicos)”, segue Lars.

“O Rolf inclusive deixou o mastro dele para ser reserva do nosso barco e nos deu todo o apoio. De lá fomos para uma regata na Alemanha que todo mundo ia. Era uma prova no Mar Báltico, no norte da Alemanha, que foi disputada mais ou menos um mês antes das Olimpíadas. Lá nós ficamos em quarto, se não me engano. Ali nós confirmamos que tínhamos boa chances”, continua o sueco.

As provas olímpicas em Tallin

Sobre os Jogos Olímpicos de Moscou, Lars Bjorkstrom mantém frescas as lembranças de tudo o que ele e Alex viveram no verão europeu. “Sabíamos que tínhamos chances de ganhar uma medalha. Mas ouro é ouro e era difícil pensar nisso. A partir da regata da Alemanha, fomos para Tallin, na Estônia, onde foram disputadas as provas dos Jogos Olímpicos, porque Moscou não tinha raia apropriada. Lá não tem mar e o lago também não é tão grande”, conta Lars.

“Como tínhamos velejado por lá nos três anos anteriores aos Jogos Olímpicos, a gente já conhecia tudo. Tínhamos ido para regatas em 1977, 1978 e 1979. Estávamos familiarizados com a correnteza, com o tempo. Estávamos em casa. Mas o legal foi que mesmo com as regatas tendo sido em Tallin, nós conseguimos ir a Moscou para assistir à cerimônia de abertura. Eles fretaram um voo e levaram os atletas. Estávamos lá no estádio na abertura e foi bem emocionante ver tudo aquilo”, anima-se o sueco.

A dupla, no barco Jacaré II, o mesmo que os levou ao ouro olímpico. Foto: Alex Welter/arquivo pessoal

As regatas nos Jogos Olímpicos se mostraram incrivelmente favoráveis para Lars e Alex. Tudo estava dando certo e o momento foi tão bom que o ouro veio antes mesmo do final da competição. “Depois de quatro regatas, tínhamos quatro barcos empatados na liderança. E nós éramos um deles. Daí, tivemos a sorte de ter um vento perfeito para a gente, não muito forte, mas não fraco. Na quinta regata ganhamos e na sexta também”, emenda Lars.

O triunfo na sexta regata selou a medalha de ouro, embora nem Lars e nem Alex tivessem percebido isso de início. “Nós ganhamos quando a gente cruzou a linha na sexta regata. Até ali, a gente não conversava nada sobre chance de ganhar as Olimpíadas. Mas quando a gente viu uma festa a bordo de um navio lá na linha de chegada, a gente se olhou e disse: ‘Será que a gente ganhou?’. E a partir dali foi uma grande festa”, emociona-se Lars.

Alex dá mais detalhes sobre o momento da conquista. “Na hora foi um choque, com até uma certa surpresa. Sabíamos que estávamos bem preparados, que estava tudo a favor, que tinha dado certo. Mas o sentimento na hora foi de surpresa. Eu recordo até o comentário do nosso chefe de delegação, Clóvis Puperi, dizendo que a gente não tinha ideia do que tínhamos acabado de conquistar. A gente ainda estava naquela euforia da comemoração e na hora não nos demos conta de que aquilo era um feito inédito e que tinha sido conquistado após um grande jejum de medalhas de ouro nas Olimpíadas.”

De Lars para Lars

Assim, no dia 29 de julho de 1980, na capital da Estônia, distante mais de mil quilômetros de Moscou, um sueco motoqueiro e aventureiro com alma brasileira e o autor do bilhete que ele um dia encontrou no chão de sua casa tornaram-se os primeiros campeões olímpicos da vela do país.

Para Lars Bjorkstrom, sentir-se um campeão olímpico hoje, 36 anos depois e no ano dos Jogos Olímpicos Rio 2016, é algo que o faz refletir sobre tudo o que se passou desde aquela data. “A gente encarou aquilo e ainda encara com tranqüilidade. Naquela época, não tinha essa loucura de agora. Tinha, é claro, pessoas interessadas. Mas não mudamos a vida nem um pouco depois do ouro. Não dava para viver apenas como esportistas”, ressalta. “Mas obviamente que tudo o que veio depois teve influência muito grande na minha vida pessoal e profissional. A empresa onde ainda trabalho fez até um filme para mostrar em nossos eventos de informática e tive que explicar as semelhanças entre o que eu e o Alex fizemos na nossa carreira na vela e o trabalho que desempenhamos na empresa”, destaca Lars.

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Alex Welter e Lars Bjorkstrom: parceria destinada ao sucesso. Foto: Alex Welter/arquivo pessoal

“Eu estive no evento-teste da vela no Rio de janeiro no ano passado e o pessoal é todo profissional”, ressalta Alex Welter. “Ganhar uma medalha de ouro demanda um preparo e uma dedicação excepcionais hoje em dia”, continua o campeão.

Após a conquista do ouro em Moscou, Lars e Alex até pensaram em parar. Já tinham feito o suficiente. Mas foram forçados a prosseguir pela força da situação. “Lembro que conversamos sobre isso e pensamos: ‘Agora pega até mal dizer que vamos parar, né?’ Então decidimos continuar por mais quatro anos”, recorda Lars.

Os dois seguiram competindo, mas, durante as eliminatórias para os Jogos Olímpicos de Los Angeles 1984, Lars e Alex acabaram superados.  “Na eliminatória de 1984 quem ganhou foi o outro Lars, o famoso Lars Grael (que terminaria as Olimpíadas daquele ano em 7º lugar, ao lado do parceiro Glein Haynes na classe Tornado. Lars Grael mais tarde conquistaria duas medalhas olímpicas na Tornado: o bronze em Seul 1988 e o bronze em Atlanta 1996). E daí eu falei, agora podemos aposentar porque já temos um sucessor”, encerra o sueco.

Medalha no saco de confetes

Para os campeões olímpicos, a medalha de ouro representa a personificação de um sonho realizado. Por isso, muitos as guardam em cofres em casa ou mesmo em bancos. Tendo encarado sua conquista como algo natural e sem demonstrar deslumbre pela histórica façanha, Lars Bjorkstrom lembra que por muito tempo ficou sem olhar para sua medalha por um motivo inusitado.

“Minha medalha fica em casa, mas bem escondida. Tão bem escondida que teve uma época que minha mulher não lembrava onde. Foram vários anos sem a gente saber onde estava. E a gente não procurava porque sabíamos que um dia a gente ia achar. E achamos sabe onde? Estava em uma saco de confetes de carnaval”, diverte-se Lars.

Alex (de azul, à esquerda) e Lars (de azul, à direita): medalha em um saco de confete e na sala de estar. Foto: Alex Welter/arquivo pessoal

Alex Welter, por outro lado, gastou mais tempo pensando na melhor maneira de tratar sua medalha de ouro olímpica. “Ela fica lá em casa. Tenho um quadro, uma maquete de um Tornado muito linda e a medalha fica ali, junto com a maquete”, detalhou o campeão.

Por último, uma correção histórica. Assim como já foi escrito de forma errada que Lars e seu amigo estavam em uma viagem de volta ao mundo quando chegaram ao Brasil, também já disseram que o sueco era hippie quando iniciou a aventura de moto. Perguntado sobre isso, Lars deu uma gargalhada ao telefone: “Não tem nada disso. Eu nunca fui hippie. Naquela época, quando você chegava à fronteira do México com a Guatemala, encontrava uma placa que dizia que hippies e pessoas com cabelos longos não entravam”, recorda o sueco.

Luiz Roberto Magalhães – brasil2016.gov.br